EXPOSIÇÃO . VASOS COMUNICANTES
VASOS COMUNICANTES
Curadoria: Carlos Alexandre
Período: 21 de outubro a 16 de dezembro de 2023
Livre para todos os públicos
Vasos Comunicantes | Coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz

"A quem prefixa onipotentes normas e uma secreta e rígida medida às sombras, imaginações e formas que destecem e tecem esta vida."
Jorge Luis Borges

"Ler é sonhar pela mão de outrem" e a exposição Vasos Comunicantes, aqui apresentada é, antes de tudo, um convite para sonhar. A afirmação do escritor e poeta Fernando Pessoa, contida no póstumo Livro do Desassossego (1982), é apenas uma das diversas referências ao universo dos sonhos no campo artístico e do pensar. Tal universo, ao qual a humanidade tem acesso e com o qual se relaciona, com mais ou menos intensidade, desde seus registros mais longínquos, há muito é objeto de debate e investigação; das ciências mais positivas à filosofia, passando pela psicanálise e pelas artes plásticas. O termo que dá título a esta exposição toma emprestada a metáfora criada por André Breton, um dos principais teóricos do surrealismo, para designar a relação que este acreditava existir entre a vida acordada e as imagens-objeto que produzimos durante o sono – crença completamente solidificada após Breton ter contato com a publicação de A interpretação dos sonhos (1900) de Sigmund Freud, difusor da psicanálise no ocidente.

Freud foi quem trouxe, de vez, a concepção de que as experiências do sono não dizem respeito apenas a meras imagens mentais e sim representam uma dimensão da mente – que viria a ser tratada como inconsciente – com a qual o consciente dos indivíduos, e suas vivências, estabeleceriam intercâmbio profundo sob uma organização e lógica ainda a serem decifradas; seus registros seriam os sonhos. Já Breton, em seu ensaio Vasos Comunicantes publicado em 1932, para simbolizar essa relação, elencou um objeto de experimentos da química (os vasos comunicantes), o qual consiste em dois ou mais tubos conectados pela base por um duto aberto, que ao receberem qualquer quantidade de líquido sempre apresentarão, uma vez que este se assente, mesmo nível. Pelo fato de o fluido sempre se apresentar nivelado, independentemente de como o instrumento é posicionado ou do formato, densidade e volume de seus recipientes, constata-se a comunicação.

Apesar de Breton se ater às implicações filosóficas, poéticas, psíquicas e sociais que as ideias de Freud trariam, e não necessariamente igualar o produto sonho à obra de arte, é possível se inspirar em seu ímpeto metafórico e arriscar uma aproximação simbólica entre ambos, uma vez que se trate de imagens-objeto igualmente enigmáticas e repletas de signos e, assim como pensavam Breton e Freud, elaboradas sob a natureza de um processo mental/sócio-cultural. Neste sentido, oferece-se nesta mostra não somente, como já dito, a possibilidade de sonhar, mas também a de contemplar os sonhos de outrem na forma do objeto artístico. "Dirá a formiga cética que quem sonha assim tão livre é o artista (...). O sonho é a imaginação sem freio nem controle, solta para temer, criar, perder e achar", sublinha o neurocientista Sidarta Ribeiro em seu livro O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho (2019).

Ribeiro também chama atenção para outro dos vários sentidos que o sonho pode ter: o de objeto de desejo e realização. Este também bastante presente como motivo, ou sendo a sua própria materialização, no contexto da produção e do pensamento artístico. A obra Murano (2002), de Alexandre da Cunha, demonstra como o trabalho de ornamentar um material, no caso o plástico PET, pode fazer, por meio do processo artístico, com que um objeto passe do "status" de descartável para o de cobiçado, admirável. Nas palavras do crítico e curador Rodrigo Moura, Da Cunha "simula objetos de desejo elitizados (cristais) por meio de materiais precários, retirados de sua função original (plástico com design de vidro), e ironicamente os devolve a outro sistema de culto de objetos supostamente mais nobre: aquele da arte".

A discussão acerca do caráter questionável de nobreza ou não do sistema da arte, ensejada pelo "supostamente", por ora pode ser deixada de lado. Importa mais, na sentença de Moura, e evidentemente no trabalho de Da Cunha, assim como nos demais à mostra neste espaço, o aspecto do "culto de objetos". Culto este que não significa posicionar o objeto acima do sujeito, em local inalcançável, e sim fazer a mediação deste com o mundo – não à toa Breton evocou um objeto para figurar essa correlação –, muito embora esta também seja "baseada em estranhamento e desconhecimento", como aponta a filósofa Virginia Ferreira da Costa em prefácio para o livro A vontade das coisas: o animismo e os objetos (2022), escrito pela também filósofa Monique David-Ménard. As obras Objeto de aço (1978), de Waltercio Caldas, e Peixes (1990), de Carmela Gross, representam a parte (isso não significa que a exposição esteja organizada fisicamente em setores) em que o visitante tem sua mediação – por que não dizer sonho? – totalmente embalada pelo estranho e desconhecido, ainda que pelo possivelmente intrigante e sedutor. As pinturas abstratas Sem título (2012), de Lucas Arruda e Sem título (2002), de Sergio Sister, ainda com mais intensidade, compartilham do mesmo expediente enigmático, que poderia ser o de qualquer cena onírica (dos sonhos).

Sonho (2013), de Cafi, como o próprio título sugere, também transporta o espectador para um ambiente nebuloso. Entretanto, ainda que seus objetos sejam mais reconhecíveis, ao contrário do que ocorre nas obras de Caldas, Gross, Arruda e Sister, suas composições de imagens são montadas em sobreposição sem qualquer indício de linearidade ou construção discursiva. Neste momento, o culto aos objetos reais, mas envolto em incertezas, inclusive acerca da veracidade do que figura na cena ou da própria cena, estreita ainda mais os limites entre o que se vê e o que se produz de material tangível – no caso a obra de arte – e o que se projeta internamente; entre exterioridade e subjetividade. Tornam-se "duas construções irredutíveis de uma mesma realidade", apropriando-se das palavras de David-Ménard. Aqui se poderia estar falando igualmente de Sala de espera (Terrace) (2001), de Janaina Tschäpe e Catedral (2009 - 2011), de Vanderlei Lopes.

Se o que faz a comunicação e mediação entre o indivíduo e o mundo são os objetos, seja ele o artístico ou o onírico, o que o intermediaria como os seus próprios objetos intermediadores são os sentidos corporais. Em se tratando da arte, há por parte desta um apego ao sensorial e físico que aqui não poderia ser ignorado. Em é = (o espelho) um véu? (2012), de Waltercio Caldas, o que está em jogo é algo que se encontra também em Murano e em Eingang (2015), de Jorge Macchi: a confiabilidade da visão. Ao mesmo tempo em que o espelho reflete e o vidro possibilita ver através, há incerteza em relação ao que pode estar disfarçado, encoberto ou distorcido, em vez de revelado, refletido ou transparente. Analogia pronta para o que se vive no mundo contemporâneo de produção incessante de imagens, realidades (virtuais ou não) e discursos.

Além disso, outros trabalhos trazem demais sensorialidades ao percurso da mostra. Para os objetos que a visão não é capaz de decifrar, o tato se mostra fundamental. Já em Estratégia para perda de sentido - Santa Bárbara ou Iansã (2002), de Caetano Dias, o embaralhado de sons que são emitidos da instalação mostra que o jogo de evidenciar e confundir não é privilégio da imagem. Em Cheap emotions (Realities), 1995, de Valeska Soares, o objeto de vidro translúcido, contendo um líquido escuro, um perfume, repousa no centro de uma placa de madeira que o acomoda em um molde de seu exato formato. Ao seu lado há outra placa, com o mesmo formato de molde no centro, porém vazio. O contato com a obra nos revela formato, cor e materiais, entretanto existe um elemento que fica a cargo do espectador atribuir, que é a sua fragrância.

Por mais que o objeto nos entregue as suas informações plásticas, há sempre a falta; e é nesse movimento duplo e livre que este passa a existir – tal qual um sonho, que sem as tentativas de interpretação, não passaria de imagens e formas sofrivelmente lembradas. Há quem passe uma vida dizendo que não sonha. É provável que seja possível também que haja quem passe uma vida sem notar a "vontade das coisas" que o circundam. Vontade, que, pelas mãos de outrem ou não, de muitas formas se relaciona, até mesmo confunde-se, com as suas próprias vontades e desejos; com seus sonhos noturnos e de vigília.

Carlos Alexandre, curador
Encerrando o calendário de exposições no ano de 2023, o Instituto Figueiredo Ferraz exibe a exposição "Vasos Comunicantes", com curadoria de Carlos Alexandre, contando com 14 obras do acervo abrigado pelo IFF, que compreende a coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz. A mostra é viabilizada pelo edital Reação realizado pelo Fundo Municipal de Cultura e Secretaria Municipal da Cultura e Turismo da Prefeitura de Ribeirão Preto e inaugura um movimento paulatino extremamente necessário de adesão a medidas de acessibilidade ao espaço da instituição e ao curso das exposições.

Para a realização deste projeto também foi fundamental o apoio e colaboração de duas das mais importantes instituições educacionais da cidade, a Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto e região (ADEVIRP) e o Centro Universitário Moura Lacerda. Por parte da ADEVIRP, além do conteúdo teórico e prático do treinamento ministrado à equipe, pudemos contar com a elaboração, seja por indicação de profissionais ou produção da própria associação, de materiais com todos os recursos adequados ao acesso de pessoas com deficiência visual e pessoas com baixa visão. Já o Centro Universitário Moura Lacerda, em especial o departamento do curso de Arquitetura e Urbanismo, mobilizou seu corpo docente e discente para construção de uma maquete tátil de todo o prédio do IFF, incluindo a sala que recebe esta exposição com as obras e suas localizações devidamente sinalizadas.

Agradecemos as instituições envolvidas imprescindíveis para darmos este importante passo em direção à construção de um espaço cultural e educativo cada vez mais inclusivo e de amplo acesso.

Instituto Figueiredo Ferraz
Peixes, 1990
Carmela Gross (São Paulo, SP, 1946)
64 peças de alumínio fundido - Dimensões variáveis
Catedral, 2009-2011
Vanderlei Lopes (Terra Boa, PR, 1973)
Bronze patinado, água do mar - 99 x 100 x 51 cm
Sem título, 2012
Lucas Arruda (São Paulo, SP, 1983)
Óleo sobre madeira - 42 x 42 cm
Rua Maestro Ignácio Stábile, 200 | Alto da Boa Vista | Ribeirão Preto | SP | Brasil
Terça a Sábado, das 14h às 18h | Entrada Gratuita
+55 16 3623 2261 | +55 16 3623 2262
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