EXPOSIÇÃO . PLANO, LINHA, PONTO E NÓ
PLANO, LINHA, PONTO E NÓ - JULIO VILLANI
Curadoria: Agnaldo Farias
Período: 02 de agosto a 06 de setembro de 2014
Livre para todos os públicos
VILLANI VIAJANTE

Julio Villani vive cruzando fronteiras geográficas, viaja entre Brasil e França, embaralha seu português com o francês -lembremo-nos que cada idioma é uma forma particular de ser e estar no mundo-, com a mesma paixão e interesse com que navega no tempo revisitando anualmente o interior de São Paulo, o local de suas experiências infantis: o calor intenso e espesso apenas interrompido pelos cordões de água que, abruptos, desabavam do alto lavando o casario de desenho simples - telhado de duas águas, janelas e porta na fachada concisa, árvore frondosa à frente, derramando o nanquim generoso de sua sombra.

Cedo, ainda nos anos 1980, Villani mudou-se para Paris, talvez para ficar mais próximo de alguns de seus deuses, aqueles que têm por panteão os magníficos museus daquela cidade, mas sem se importar em cruzar essas altas referências artísticas com o trabalho sobre o corpo das linguagens duas linguagens que transita por ele, como também misturar a avalanche de informações proporcionadas por sua posição no centro da Europa, com as roupas que, quando era criança, molhadas e nítidas quaravam sobre a grama verde para depois serem secadas nos varais como bandeiras prosaicas; com a água pura e fria que subia do poço por meio de uma roldana, com o barulho monótono e perfumado da máquina de beneficiar café, com os brinquedos e jogos como o bilboquet, o rouba-monte, a amarelinha, presenças corriqueiras numa paisagem que hoje jaz quietamente adormecida.

Adormecida? Como a aranha que retira de dentro de si o fio de linha que, tecido, lhe serve de abrigo e armadilha, o pensamento, imagem represada, é buscado de dentro dos seus abismos para então conhecer a luz.

Esta é a tônica da obra de Julio Villani: tão simples e familiar na aparência, tão carregada de sentidos. Por isso mesmo essa sua exposição, como qualquer uma de suas exposições, ostenta um ar meio desajeitado. Explicando melhor: em coerência com sua própria natureza, esse conjunto de lençóis exigiria ser exposto ao ar livre, contra o céu azul, enfunando-se, tremulando no ritmo variável do vento, como estandartes e bandeiras, como “roupas comuns dependuradas”. Os espaços expositivos serão sempre demasiado formais e elegantes, terminam por envolvê-los em circunstância e sisudez.

Aproximando-se de cada um desses lençóis, reparando melhor neles, observa-se o apuro com que foram confeccionados, o trabalho das amáveis costureiras contratadas pelo artista. Todos eles possuem a mesma aura de delicadeza. Produtos do trabalho minucioso feito com a ponta dos dedos premindo agulhas e perfurando o tecido para realizar, através de linhas azuis, pretas e vermelhas, as letras, números, e desenhos planejadas pelo artista. E o que contam esses desenhos, quais os conteúdos bordados nesses planos moles e aconchegantes ao tato? São textos e palavras compostos por letras escritas em tamanhos diversos, textos e palavras combinados com desenhos esquemáticos do corpo humano e ainda textos e palavras submetidos a esquemas cartográficos.

A primeira vista desconexos, lidos e relidos cada lençol mostra-se um mosaico que conjuga referências teóricas, afetivas e geográficas; uma cartografia que se vale de cifras múltiplas, como um corpo que acusasse na própria pele suas alegrias, suas angústias, seus desejos, seu trânsito por tempos e países, acumulando experiências e reorientando sua rota a cada passo. Cada lençol como que descobre um ângulo do próprio artista, traz impresso as marcas de seu corpo. E não é sempre assim? Afinal não custa lembrar o que são lençóis, para que servem. O tecido com que à noite nos cobrimos para então refletirmos sobre o dia, repassar os caminhos futuros, viajar pelo território do inconsciente. E não deixa de ser curioso constatar que regularmente, no geral uma vez por semana, lavamos o lençol para em seguida pendurá-lo no varal. Para que ele seque despojado de todo peso adquirido ao longo das noites passadas junto a nós? Pois isso não servirá para esses lençóis de Julio Villani, que levarão para sempre, indeléveis, suas marcas, como um diário de viagem cujas anotações se convertessem em cicatrizes.

A escritura poética é uma constante na obra de Julio Villani e ele a pratica sistematicamente como estratégia para apontar o caráter lúdico da língua, isto é, do pensamento e da expressão. Interessa-lhe o fluxo das palavras e o modo como que cada uma delas pode ser desmontada e reorganizada pelas sílabas, produzindo palíndromos, desvios de sentido, trocadilhos, aliterações, ruídos de sentido que no fundo são impulsos de liberdade de uma língua que não cessa de verter novos significados, que se nega a adormecer nas folhas secas de um dicionário como um animal selvagem falsamente domesticado pelo uso da força. A bem dizer o artista se interessa por signos em geral, dos mais abstratos aqueles de fundo representacional. Em seus trabalhos as letras se juntam a números, traços, às manchas de um texto de um jornal qualquer, aos instrumentos utilizados pelo artista para realizar seu próprio trabalho. Em princípio tudo serve. Não há impureza ou elemento estranho. O artista opera com a diversidade, como que permanentemente tomado por um impulso infantil de curiosidade, movimento que o leva a unir o que está separado, a colecionar, a catalogar.

Julio Villani é um artista que joga com as formas e sua capacidade de gerar sentidos. Seu trabalho consiste em explorar a maleabilidade dos signos, por si e em sua relação com os outros. Assim, seu corpo é simultaneamente lençol, mapa, texto, matéria maleável que dança ao vento. A mesma linha desenhada, bordada, é o laboratório onde são fabricadas versões de tudo o que há, de bicho a gente. E os seus lençóis são páginas de diários, mapas de uma ciência fundada na afetividade, e também a lembrança de que, com eles estendidos, cobriríamos nossas camas, com eles inflados velejaríamos em direção aos sonhos.

Agnaldo Farias
FAUUSP
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