EXPOSIÇÃO . FOTOGRAFO O QUE NÃO VEJO
FOTOGRAFO O QUE NÃO VEJO
Coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz
Período: 09 de outubro de 2021 a 07 de maio de 2022
Livre para todos os públicos
"Si entierras una palabra crecerá una imagen". Assim o fotógrafo espanhol Chema Madoz encerra o livro Fotopoemario (2003) lançado em coautoria com Joan Brossa, poeta e artista plástico também espanhol. Se de imediato a afirmação de Madoz estabelece relação direta entre linguagem escrita e criação de imagens, é possível ir adiante com o que enseja sua ideia e dizer que imagem é palavra - ou palavras -, sem que a elaboração de uma esteja necessariamente condicionada à fecundidade da outra. Com o surgimento da fotografia no século XIX, surge também uma nova categoria de imagem que estabeleceria de maneira irreversível, principalmente a partir de meados do século seguinte, novo paradigma à forma de comunicação, de tal sorte que hoje seja impossível pensar em algum veículo ou ferramenta comunicacional, de espectro público ou privado, que não disponha ou faça uso de vários recursos visuais tornando dispensável a escrita alfanumérica. A esta nova categoria, o filósofo e pensador cultural checo radicado no Brasil, Villém Flusser, deu o título de "imagem técnica", definindo-a como toda e qualquer imagem produzida por um aparato tecnológico, independente do seu nível de automatismo, detentora de códigos estéticos e simbólicos próprios, adquiridos de maneira pré-programada. O que inclui, evidentemente, as produções no campo das artes, que rapidamente assimilaram as novas tecnologias, pulverizando-se em inúmeros suportes até então restritos à documentação e ao registro; a linguagem pictórica, tradicionalmente afeita à pintura e à gravura, ou o apelo formal das peças escultóricas abrem espaço a um sem-número de possibilidades imagéticas. É o caso dos 30 trabalhos, pertencentes à coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, reunidos nesta exposição. Trata-se de fotografias e impressões digitais (datadas de 1938 a 2019), que ao passo que compõem o universo das imagens técnicas, marcado por uma complexa rede de reprodutibilidade e distribuição em massa, subvertem-no devido ao caráter artístico experimental que lhes confere singularidade.

O conceito engendrado pelo intelectual checo-brasileiro propõe que o olhar sobre as imagens técnicas deve seguir o caminho inverso daquele que comumente se volta às "imagens tradicionais" produzidas pelas sociedades no decurso da história. Estas imagens deixariam de ser meras tentativas de representação da realidade, para se tornarem o próprio campo de criação e tensão do real, de suas leituras e interpretações. Vive-se um mundo inundado de imagens técnicas que guiam, a todo instante, literal e simbolicamente, os passos dos indivíduos e, por consequência, os rumos dos acontecimentos socioculturais. Das sinalizações com as quais nos deparamos cotidianamente no trânsito e nos espaços públicos às fotos que estampam capas de jornais e feed de notícias, há mais do que a intenção de apenas ilustrar uma mensagem. Flusser e Madoz são consonantes: imagem é além daquilo que vemos; é o que comunica e que é usado para se comunicar; é o que se deve ler e que ensina; é o que se absorve, produz-se, consome-se e se replica.

Em 2015, produziram-se, a cada dois minutos, mais imagens que o total realizado nos últimos 150 anos, sendo que, à época, por volta de 1 bilhão de dispositivos com câmera estariam ativos. Estima-se, ainda, que em 2021 serão tiradas cerca de 1,4 trilhões de fotos – 89% delas por meio de um smartphone – e que, em um dia comum, é possível haver mais de mil fotos publicadas por segundo em uma rede social como o Instagram. Isso sem levar em consideração as imagens registradas pelo fotojornalismo; por meio dos instrumentos de monitoria individual dos corpos; pelas ferramentas de controles de acesso; pelas aplicações de dispositivos pessoais etc. A despeito de Flusser não ter presenciado o advento de tais tecnologias da informação, é lícito dizer que o que há hoje, em termos de criação de imagens, corrobora cada vez mais suas premissas, especialmente em relação aos desdobramentos conceituais e estéticos que esse fenômeno seria capaz de acarretar. Diante disso, de que maneira se colocam as imagens que buscam o estatuto de arte e obtêm sua produção intermediada por aparatos técnicos?

Tornou-se habitual a publicação de uma fotografia na internet, por exemplo, acompanhada da orgulhosa legenda: "sem filtro" - no intento de afirmar que aquela não tenha sofrido qualquer interferência ou tratamento intencional - sem considerar, entretanto, que o dispositivo com o qual a imagem foi capturada já possui seus "filtros" pré-programados. Na realidade, até mesmo se a câmera for analógica o resultado que será apreciado a olho nu não será livre da interferência de determinadas configurações intrínsecas a ela. Uma verdadeira caixa preta a ser desvelada - apropriando-se do termo atribuído pelo filósofo.

Há uma frase célebre do fotógrafo e artista alemão Andreas Müller-Pohle que diz: "O que eu não vejo eu fotografo, o que eu não fotografo eu vejo". A caixa preta de um avião tem como principal signo o obscuro, o desconhecido, portanto aquilo que é impossível de ser visto, a menos que uma situação extraordinária exija a tarefa de trazer a lume seu conteúdo. O terreno movediço que é o universo das imagens técnicas é a própria situação - não tão mais extraordinária - que faz com que o artista fotógrafo, na qualidade de operador do aparato, acumule ao seu ofício o desafio de desvelar a "caixa preta" se quiser deter - ou ao menos tentar - o controle de sua produção. Impressões obtidas a partir de intervenções físicas no negativo, o uso de objetos materialmente híbridos e ressignificados como suporte, a experimentação no mecanismo de captura e a manipulação da própria imagem (física ou digitalmente) surgem como recurso.

Obviamente essa reflexão não tenciona afirmar que os trabalhos desenvolvidos ao longo de mais de um século, no que tange às linguagens abordadas, limitam-se a criar, de maneira quase obsessiva, alternativas à "situação problema" desenvolvida aqui. Como muito já se discutiu, a arte tem como uma de suas faculdades a de "libertar" o artista e sua obra de qualquer determinismo. Neste sentido, por mais que as obras presentes nesta exposição tenham em comum o fato de terem lançado mão de algum aparato técnico na produção de suas imagens e, de maneira intencional ou não, tenha o subvertido por meio da experimentação, não significa que nelas não haja questões estéticas e conceituais particulares.

Há a possibilidade, ainda, sem que se induza o percurso da visita, de seccionar a linha expositiva em três núcleos: um com obras que privilegiam o aspecto técnico formal da imagem, tendo como expositores Geraldo de Barros (um dos notórios representantes do movimento brasileiro de arte concreta e pioneiro da fotografia experimental no Brasil), Flávio Samelo, Fernando Vilela, Vik Muniz e Frank Thiel; outro lançando luz a diálogos e interações com a história da arte e suas tradições iconográficas, com fotografias que trazem ressaltada atenção ao caráter pictórico, no caso das obras de Albano Afonso, Nicola Constantino, Nino Cais, Chema Alvargonzalez e Cristián Silva-Avária, passando pelas imagens construídas digitalmente de Alberto Lezaca e Claudia Jaguaribe, chegando nos trabalhos de Michael Wesely, com sua autêntica maneira de capturar com longa exposição o objeto ou cena, e Sofia Borges, detentora de um olhar (re)significador em direção a artefatos marcadamente vinculados aos seus contextos históricos; e, finalmente, um terceiro núcleo formado pelo segmento das fotos que, devido à configuração estética do que é fotografado – um cenário urbano, uma paisagem ou instante de intimidade –, chegam a emanar em conjunto certa narrativa envolta em atmosfera onírica oferecida pela distorção, que beira a ilegibilidade das imagens, ao mesmo tempo que, individualmente, incitam a apreciação dedicada a cada um dos trabalhos de Valeska Soares, Ana Quintela, Márcia Xavier, Masao Yamamoto, Pierre Verger, Fernando Lemos e Odires Mlászho.

É possível dizer que existe um espaço generoso para as fotografias e impressões digitais na coleção Figueiredo Ferraz. Esta pequena mostra, que será, provavelmente, a primeira de muitas dedicadas a essa linguagem, não esgota, portanto, as inúmeras possibilidades de relações, olhares e discussões que outras exposições, com obras em maior ou menor quantidade, são capazes de suscitar. No que diz respeito ao conjunto aqui elencado, há, como um prólogo, ou um convite, a proposta de se pensar imagens. Imagens que permeiam o mundo e a vida cotidiana nos mais variados aspectos e acepções.
sem título (c74), 2008
THIEL, Frank (Alemanha, 1966)
impressão cromogênica - 240 x 176 cm
Fotoforma, Estação da Luz, 1949
DE BARROS, Geraldo (São Paulo, 1923-1998)
Fotoforma
Image-as-image project, Ad Reinhard in his Studio, 2013
LEZACA, Alberto (Bogotá, 1971)
Glicée print - 56 x 90 cm
Image-as-image project, Chapel, 2014
LEZACA, Alberto (Bogotá, 1971)
Glicée print - 88 x 98 cm
da série natureza-morta, 2016
AFONSO, Albano (São Paulo, 1964)
Fotografia - 95 x 135 cm
Rua Maestro Ignácio Stábile, 200 | Alto da Boa Vista | Ribeirão Preto | SP | Brasil
Terça a Sábado, das 14h às 18h | Entrada Gratuita
+55 16 3623 2261 | +55 16 3623 2262
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